ALERTA: Esse texto contém descrições de LGBTQfobia, abuso psicológico, abuso sexual e ideação suicida. Todos os temas são relatos pessoais da autora e são abordados sem romantizações.
I. Papéis
Quando completei sete anos de idade, eu comecei a me odiar. Era meado dos anos dois mil e lá vai bolinha, quando Lady Gaga emplacava as paradas musicais e a Zorra Total ainda era apoliticamente engraçada — ou, no mínimo, fingíamos que sim. Sai de casa numa manhãzinha bem amena para visitar um amigo do outro lado da rua e foi ali, no meio do caminho, que a encontrei, preparada para abocanhar toda a esperança de um mundinho melhor que existia em mim: a transfobia. As palavras saíram diretamente da boca do meu colega e perfuraram minha carne pela eternidade. “Você tá fingindo ser mulherzinha?”, disse ele, com desdém. Ainda lembro das mãos trêmulas e o sorriso desconcertado em meu rosto - infelizmente o primeiro de muitos. Não entendia o porquê da pergunta e, por instinto, neguei. Em seguida, ele completou: “Então porque você anda igual baitola?” Me fiz de desentendida. Já era óbvio o que incomodava: o jeito que eu, uma criança viada, desfilava. Meu amigo insistiu, mas eu reneguei até encher os olhos de lágrimas. Com um cadinho de dó, ele deixou o assunto de lado e fomos jogar o bom e velho Playstation. Para ele, um garoto padrão e descoladinho de classe média, retirado de uma sitcom adolescente dos anos 2000, era fácil esquecer cada detalhe daquele dia. Para mim, uma criança pobre, transviada e queer, sem o autoconhecimento necessário, não. Tomar aquele socão na boca de uma pessoa que eu admirava — e, diga-se de passagem, até amava — amargou a minha língua e deu uma amostra do gostinho reservado para o meu futuro.
II. A próxima Priestly
Não me lembro quando foi a primeira vez que assisti O Diabo Veste Prada — uma daquelas memórias tão profundas que se perdeu no mar de quem sou. Sei que mamãe sempre foi fã de Meryl Streep e, como “filha de peixona, peixinha é”, também me tornei. Mamãe tinha um sonho grande de ser estilista. Costureira, teve um ateliê, uma loja de moda popular, uma confecção. Me ensinou a arte de ligar pontos. Para mim? Uma estilista nata. Modelava roupas como ninguém, reconhecia a qualidade de um tecido de longe. Para ela? Esse título nunca fez sentido. “Não sou formada, filha. Sou costureira.” Ser estilista era coisa de gente rica; a moda, verdadeira, não saía de suas mãos. Insistia para mamãe se ver com os meus olhos — nunca conseguiu. O mundo pisou nela como uma barata. Desvalorizada, surrupiada, dona de nada, nem de si mesma. Nunca parou de sorrir. Entre os dentes, escondia as mágoas, a depressão, as tentativas. Os anos em um relacionamento abusivo. O único em toda sua vida, que a sugava com traições e violências sutis, mascaradas de amor. Escondia de mim. Não queria que eu enxergasse a crueza por trás da sua falta de vulnerabilidade — não tinha direito, não era digna. Só via mamãe chorar quando Streep entrava em cena. Loira, como ela, lembrava um sonho antigo: atuação. “Queria ser assim: um luxo.” Vi o impacto de mamãe ao encarar Miranda Priestly. Editora de moda, luxuosa, elegante, poderosa. Estilista. Digna de respeito. Uma vilã? Talvez; há controvérsias. Mas, acima de qualquer coisa, digna de respeito. Digna: artefato raro que mamãe nunca encontraria. Quando me fiz Alice, assumir o sobrenome Priestly foi uma tentativa de furtar esse manto. Queria que o mundo não fosse tão cruel comigo quanto foi com mamãe. O resto... bom, vocês já sabem.
III. Queimem a bruxa
Há quatro anos, nascia Alice Priestly. Ainda em pandemia, minha mente se sucateava com cenários hipotéticos em que o Inelegível não teria se candidatado. A realidade era outra: vivíamos uma fase distópica de um cyberpunk mal escrito. Eterna, sem volta e desesperadora. Já consciente da minha transgeneridade, precisei renascer. Aquele não foi meu primeiro renascimento, mas talvez o mais importante: quando me vi travesti. Antes, navegava pelo espectro não-binário sem rumo, angustiada pela incerteza de quem eu era ou deveria ser. Encontrei na travestilidade uma resposta. Meu único grupo de amizades era essencialmente um grupo cis. Um sapatona, o primo gay da sapatona, o amigo do primo gay da sapatona, a irmã da sapatona, o amigo chaveirinho hétero da sapatona, a possível namorada da sapatona e eu, um girino. Filhe da sapatona. Ouvi: “Pessoas trans fazem com que crianças se mutilem!”. Noutra, disseram: “Odeio como mulheres trans fetichizam a mulheridade, como se fosse bom ser mulher!”. Citações clássicas de qualquer feminista radical. Eu, com dezoito anos; a maioria ali, acima já dos vinte e cinco. Aguentei meses, até o dia primeiro de abril de 2021, quando nasci. Talvez por ironia, rompi a farsa que vivia bem no Dia da Mentira. O grupo ao redor da sapatona, ao fim, prostou-se em sua defesa. Perdi todas minhas amizades. Encolhi. Travesti significava libertação, amor-próprio, assunção — no sentido mais freiriano possível. Não rolou para os cis: era um incômodo, uma afronta, um desafio constante à sua autoridade. Autoridade de vir, ir e ser referência, do imaginário mais básico, na simples diferenciação do que é um homem e uma mulher, até a definição de sucesso. A história se repetiu: com o editor que eu admirava, com o escritor que eu era fã, com o filho da puta que me assediou ao vivo durante uma mesa de RPG e que ainda é o desgraçado queridinho da cena. A transfobia atravessou minha realidade de ponta a ponta quando assumi o rótulo de travesti. Virei a inimiga, o monstro, a bruxa. Tentaram queimar pontes, contatos, oportunidades. Destruíram minha perspectiva de um futuro. Fui submetida à prostituição. Decidi, por mim mesma, matar Alice e renascer Lis. Desafiar autoridades — ou quem se pagasse como tal — tornou-se um ato de sobrevivência. A boa notícia é: ainda estou pegando fogo, só não como esperavam.
Obrigada, lagartinhas
Só queria agradecer o apoio de vocês nos últimos dias.
Essa última semana foi um período muito sensível, em que eu pensei em desistir de tudo. Voltar à prostituição — não faço questão nenhuma de esconder — é uma realidade que preferia não ter que encarar de novo. Mas, bom, cá estamos, né?
A primeira cantiga de o que cantam as cigarras rendeu 17 assinantes pagos, minhas queridas Cigarras, e mais de 250 assinantes gratuitos. Ter tanta gente assim querendo me ler é uma honra, de verdade. Vocês me ajudam a crer que um dia viverei da minha escrita.
Obrigada por me darem a esperança de um futuro melhor. Significa o mundo para mim!
Se você tá caindo aqui de paraquedas, aproveita e já escorrega o dedinho da inscrição. Vai ser incrível ter você por aqui!
Capotando o Corsa
Na última cantiga, contei sobre o Metamorfoses, meu clube de leitura, estudos e cinema queer, que já está em pré-campanha. Eu tinha prometido abrir ele hoje, mas, bom, a vida aconteceu, e não consegui dar finalidade a algumas pendências.
Por um lado, essa é uma oportunidade de você me ajudar a dar aquela divulgadinha marota. Mostra para a tia, para o irmão, para o chefe, para seu editor favorito, para o papagaio — aposto que ele vai amar).
O Metamorfoses é uma forma de construir uma comunidade e me manter sem depender da prostituição. Vocês apoiam e, em troca, recebem vários benefícios, como edições exclusivas das cantigas, clubes e muito mais!
A nova data de lançamento será dia 1 de fevereiro, sábado, às 12h.
Conto com vocês!
Vem me ouvir!
Hoje, às 17h, vou estar lá no canal da Luluzinha falando sobre Como se inserir no mercado internacional de RPG, com enfoque em pessoas de minorias. A palestra é aberta a perguntas, então vem participar! Amaria ter você por lá!
Um último pedido!
Se você chegou até aqui, deixa um ♥ e um comentário sobre o que você mais gostou na cantiga de hoje. Tá boa? Tranquila? Um caos? Tem alguma crítica? Conta aqui!
Sua opinião é muito importante para mim. De verdade!
Essa semana, ainda nos veremos na sexta, dia 31, com uma cantiga exclusiva para indicações de obras queer nas mais diferentes mídias.
Espero que o restante da sua semana seja tranquilo.
Por aqui, com muito amor, transgressões e travessuras,
Hoje em dia a gente abraça quem passou por experiências parecidas e encontra forças para colocar no mundo textos que mostrem para nossas crianças de ontem que hoje somos o amigo com quem se pode conversar. ❤️
meudeussss Lisss, fiquei mttt emocionada 🥺🥺🥺
nossa, esse texto de hoje me fez sentir tantos sentimentos ao mesmo tempo... eu me doí MUITO por saber agr c mais detalhes a sua trajetoria, mas ao msm tempo eu me senti muito abraçada pq eu vivi coisas parecidas, e sentir isso vindo de alguem q eu admiro mt como vc eh tão bomm...
me deu mta felicidade tbm ver q, apesar de tudo, vc tem estado um pouquinho mais esperançosa 🫶🏻🫶🏻🫶🏻
amo o seu jeito sincero, honesto, sensível e afetuoso de escrever. Eu sinto q ler textos seus da a sensação de um abraço de uma amiga muito carinhosa 💖
(eu qria mttt fzr a assinatura paga da newsletter, mas realmente esse mes to meio quebrada 😔, mas logo q eu puder eu vouuu, mds n qro perder nenhum de seus textossss)